ECI E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA

ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA

 

Darlene Nascimento de Brito 1

 

RESUMO

O presente trabalho tem por objetivo identificar onde surgiu e o que ele significa o instituto do Estado de Coisas Inconstitucional, identificar a sua chegada ao Brasil e aplicar este conceito como alternativa para enfrentar as violações generalizadas dos direitos fundamentais em relação à População em Situação de Rua no Município de Salvador. A pesquisa aponta a violação massiva de direitos fundamentais, a ausência de políticas públicas efetivas na atualidade em favor das Pessoas em Situação de Ruas na Capital baiana, bem como as medidas deficitárias que a Prefeitura de
Salvador desempenha em seu papel de Estado garantidor, sem gerar impacto significativo na resolução do problema que cresce a cada ano.

Palavras-chave: Pessoas em situação de rua; Estado de coisas inconstitucional; Direitos fundamentais;

 

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO; 2. CONCEITO DE ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL; 3. ORIGEM DO INSTITUTO DO ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL; 4.ATIVISMO JUDICIAL; 5. A INVISIBILIDADE DAS PESSOAS EM SITUAÇÃO DERUA NO MUNICÍPIO DE SALVADOR; 6. POLÍTICAS PÚBLICAS NO MUNICÍPIO DESALVADOR; 7. DIREITOS BÁSICOS CONSTITUCIONAIS; 8. NÃO CABIMENTO DA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE POR OMISSÃO; 9. INSTRUMENTOS DE APLICABILIDADE DO ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL; 9.1 AÇÃO DE ARGUIÇÃO DE PRECEITO FUNDAMENTAL; 9.2 RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM REPERCUSSÃO GERAL; 10 O ENFRENTAMENTO DO ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL DAS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA; 11. CONCLUSÃO; REFERÊNCIA

 

1 INTRODUÇÃO

 

Uma pesquisa do Projeto Axé em parceria com a UFBA – Universidade Federal da Bahia no ano de 2017, estimava que a População de Rua do Município de Salvador era de aproximadamente 17 mil pessoas. A pesquisa mostrou também que a grande maioria da população era composta por homens negros ou pardos.

Não existem Políticas Públicas eficazes voltadas a essa População no Município e essas pessoas enfrentam um crônico estado de violação dos seus direitos fundamentais, sem que os órgãos competentes tomem alguma atitude para alterar o status quo da população.

Temos um cenário, portanto, que descreve ipsis litteris um Estado de Coisas Inconstitucional – que nada mais é do que uma violação massiva e contínua de direitos fundamentais, que ocorre de maneira estrutural – decorrente da omissão das autoridades competentes em geral.

A constituição federal de 1988 atribui aplicabilidade imediata aos direitos fundamentais, mas é certo de que isso não resolve todas as questões, pois a constituição estatui aos direitos econômicos e sociais princípios programáticos, necessitando, portanto, que o Poder Público (Poder Executivo) atue na implementação de Políticas Públicas para que estes direitos sejam concretizados. A ausência aqui é de aplicabilidade prática desses direitos e a Declaração do Estado De Coisas Inconstitucional pelo Poder Judiciário exigiria que medidas eficazes fossem adotadas pelas autoridades competentes, estabelecendo um prazo razoável.

Assim ocorreu quando o Brasil importou da Colômbia o Estado de Coisas Inconstitucional pela primeira vez, ao julgar a ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL nº 347/DF diante do caos do Sistema Carcerário Brasileiro e a situação das pessoas reclusas. Com a aplicação do instituto, foi determinada a realização da audiência de custódia em até 24 horas da apreensão do indivíduo, bem como foi determinado que as verbas provenientes deste fundo (FUNPEN), fosse de fato utilizadas respeitando a sua finalidade.

Esse trabalho tem como objetivo mostrar a necessidade premente da declaração do Estado de Coisas Inconstitucional em relação as Pessoas em Situação de Rua, diante do quadro extremo de vulnerabilidade e invisibilidade ao qual esta população vem enfrentando ao longo dos anos.

Trata-se de uma pesquisa exploratória, com fontes bibliográficas e jurisprudenciais abordando o tema do Estado de Coisas Inconstitucional, e analisando a possibilidade de aplicação deste instituto em relação às Pessoas em Situação de Rua no Município de Salvador – Bahia.

 

2 CONCEITO DE ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL

 

O Estado de Coisas Inconstitucional corresponde a uma violação em massa e contínua de direitos fundamentais com natureza estrutural. Ou seja, essa omissão vem das autoridades públicas e alcança um determinado grupo de pessoas, que sofre com a violação dos seus direitos constitucionais mais básicos, de forma contínua e por meio de uma deficiência estrutural.

O instituto não trata, por exemplo, de um serviço de saúde prestado de forma insatisfatória que atinge a população como um todo, mas de violações ainda mais abrangentes de direitos fundamentais que alcança um determinado grupo de indivíduos, causado um estado de vulnerabilidade que se arrasta pelo tempo.

No Estado de Coisas Inconstitucional ainda que as pessoas que se encontrem em estado de inconstitucionalidade possam pleitear suas demandas judicialmente, as violações continuam a acontecer para as outras pessoas fora da lide processual, que continuaram enfrentando a mesma lesão aos seus direitos. Aqui, o Estado de Coisas Inconstitucional nos faz lembrar do instituto de Controle de Constitucionalidade Difuso, onde os efeitos aproveitam apenas as partes, não atingindo, a terceiros estranhos àquele processo.

No Estado de Coisas Inconstitucional nos deparamos com o silêncio e a indiferença das autoridades públicas diante daquela situação habitual de inconstitucionalidade, uma omissão que se prolonga no tempo e dá vazão ao caos.

Portanto, o Estado de Coisas Inconstitucional consiste na omissão em massa de direitos fundamentais referentes a um grupo específico de pessoas, causado pela ausência de atuação das autoridades públicas competentes.

3 ORIGEM DO INSTITUTO DO ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL

O Estado de Coisas Inconstitucional surgiu na Corte Constitucional Colombiana em 1997 quando o país reconheceu a grave situação dos professores que tiveram seus direitos previdenciários violados de maneira sistemática pelas autoridades pública. Nessa ocasião, a Corte Constitucional Colombiana declarou o Estado de Coisas Inconstitucional e determinou prazo para que as autoridades competentes sanassem a inconstitucionalidade.

A Corte Constitucional Colombiana, analisou a situação e percebeu que o descumprimento da obrigação era generalizado, abrangendo 45 professores dos Municípios de María La Baja e Zambrano, com seus direitos previdenciários violados pelas autoridades públicas de maneira “geral”, sem que fosse possível responsabilizar apenas um órgão pela situação em que os professores se encontravam. Nesta oportunidade, resolveu a favor não apenas daqueles envolvidos nos processos, mas a favor de todos aqueles em que se encontravam em situação similar, Sentencia de
Unificación (SU) – 559, de 1997, como explica Faggin. 2

 

No Brasil o Estado de Coisas Inconstitucional, chegou com o julgamento da ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL nº 347/DF, que foi deferida parcialmente frente ao caos do sistema carcerário brasileiro e as condições em que se encontravam os detentos. Determinando que os juízes passassem a realizar audiências de custódia em 24 horas do momento da prisão, para averiguar se havia alguma ilegalidade no ato e proibindo, também, que o Poder Executivo controlasse os valores do FUNPEN (Fundo Penitenciário Nacional), determinando que as verbas provenientes deste fundo, fossem de fato utilizadas respeitando a sua finalidade.

2 ANDRÉA, Giafranco F. M. 2018, Estado de Coisas Inconstitucional no Brasil, 2018, p. 27-31

Pode-se observar que o judiciário adotou medidas energéticas com o objetivo de sanar o estado de inconstitucionalidade sofrido por aquele grupo de pessoas, quais sejam, as pessoas reclusas. Exercendo assim o sistema de freio e contrapesos – Check and balance system – Teoria da Separação dos Poderes. Nesse sistema cada poder é autônomo, porém um poder deve conter os abusos dos outros, com o viés de manter o equilíbrio entre os três – Poder Executivo, Poder Legislativo e Poder Judiciário.

Porém, existem alguns doutrinadores que criticam a proatividade do judiciário ao intervir nas decisões de outros poderes, insistindo na Teoria de que os juízes devem ser meros Boca da Lei – bouche de la loi – ou seja, que devem aplicar as leis de maneira mais mecânica possível, sob pena de estarem praticando ativismo judicial.

 

4 ATIVISMO JUDICIAL

 

Segundo Faggin 3 , o ativismo judicial surgiu na Suprema Corte norte-americana (sistema Common Law) ao tratar do caso Marbury versus Madison, julgando uma lei federal inconstitucional e declarando a sua nulidade. Apesar de não haver um conceito unânime sobre o tema, existindo várias vertentes a respeito, podemos concluir que o ativismo judicial consiste em um agir do Poder Judiciário respeitando os princípios e diretrizes constitucionais e o sistema de peso e contrapeso com o viés de solucionar casos concretos não normatizados, ou estados de coisas que estejam ferindo os preceitos constitucionais diante de uma ação ou omissão Estatal.

3 ANDRÉA, Giafranco F. M. 2018, Estado de Coisas Inconstitucional no Brasil, 2018, p. 122

No Brasil apesar de ainda adotarmos o sistema Civil Law – codificação do direito, leis. Podemos perceber influências bastante significativas do sistema Common Law, frente as demandas do mundo contemporâneo que mudam rapidamente sem que as leis consigam muitas vezes acompanhá-las. Desta forma, o judiciário é obrigado a resolver o caso concreto criando precedentes, pois de acordo com o princípio da inafastabilidade da jurisdição, este não pode se negar a apreciar lesão ou ameaça ao direito, como expresso no artigo 5º, XXXV da Constituição Federal de 1988.

Então, a ausência de edição de normas por parte do poder competente exige do Poder Judiciário proatividade no julgamento de determinados casos concretos, visando garantir a assistência judicial àquele que buscou o judiciário. Porém, ocorrem situações onde existem as leis, mas estas não são aplicadas. É o caso das normas de eficácia limitada, norma de princípios programáticas, onde o direito está expresso em lei, mas o Estado – lato sensu – precisa criar políticas públicas que efetivem esses direitos.

Essa inaplicabilidade de normas de direito fundamental ocorre no Município de Salvador – Bahia em relação as Pessoas em Situação de Rua, onde os direitos fundamentais estão expressos na constituição, mas não existem políticas públicas que garanta a essas pessoas gozarem dos seus direitos.

 

5 A INVISIBILIDADE DAS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA NO MUNICÍPIO DE SALVADOR – BAHIA

 

Matéria do site JusBrasil, mostra que em 2018 foi proposta Ação Civil Pública pela Defensoria Pública da União – DPU para que a População em Situação de Rua fosse incluída na contagem do Censo Demográfico. Afirma o defensor regional de Direitos Humanos no Rio de Janeiro Thales Arcoverde Treiger:

É imprescindível que o Poder Público tenha atenção às pessoas em situação de rua. Essa Ação decorre de uma omissão estatal estrutural, na medida em que essas pessoas sequer tinham o direito de ser mapeadas pelo Poder Público através de algo que é tão banal como o Censo da população. [1]

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE é uma organização pública do governo federal, que tem como objetivo básico, segundo ao artigo 2° da Constituição Federal de 1988, assegurar informações e estudos de natureza estatística, geográfica, cartográfica e demográfica necessários ao conhecimento da realidade física, econômica e social do País, visando especificamente ao planejamento econômico e social e à segurança nacional.

Observando o conceito acima, é possível concluir que as Pessoas em Situação de Rua, estão claramente à margem dos objetivos estabelecidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, pois não há interesse deste órgão público em incluir as Pessoas em Situação de Rua no censo da população de maneira a obter conhecimento da realidade física, econômica e social visando realizar um planejamento econômico, social para solucionar as questões dessas pessoas.

6 POLÍTICAS PÚBLICAS NO MUNICÍPIO DE SALVADOR – BAHIA

O Estado não é responsável apenas pela produção de normas através do Poder Legislativo, ele também é guiado pela finalidade de alcançar o bem-estar coletivo através de políticas públicas ou programas de ação governamental, com maior atuação do Poder Executivo neste sentido.

Atualmente, o Município de Salvador, não conta com políticas públicas efetivas voltadas a População de Rua. A Prefeitura da Capital baiana atua com 04 Centros de Referência Especializados para População de Rua – Centro POP distribuídos pela cidade nos bairros de Pau da Lima, Dois de Julho (inaugurado recentemente), Vasco da Gama e Itapuã. Essas Unidades foram criadas com o viés de atender de forma especializada a População de Rua, no entanto, as Unidades dispõe de agentes despreparados, estrutura precária e números que não suportam a grande demanda, tendo em vista que em 2017 o Projeto Axé apontou que sobrevivem em Situação de Rua na atualidade cerca de 17 mil pessoas segundo o jornal Correio da Bahia.

Neste mesmo jornal, em abril de 2019 o atual prefeito ACM Neto anunciou que o Município contará com 06 Centros de Referência Especializados para População de Rua – Centro POP. Observando atentamente esse anúncio, dá para notar a falta de dimensão dos problemas e o caráter paliativo das Ações Municipais aplicadas a essa parcela significativa da População de Salvador.

A diversidade de demandas dessa População pode ser compreendida observando o conceito legal de População de Rua presente no Decreto Federal nº 7.053 de 2009, ele ajuda a entender essas especificidades e a necessidade de atuações diferentes para cada grupo de pessoas dentro dessa População, esse conceito trata do fato gerador da sua condição, ele traz histórias de pessoas que
rompe com vínculos familiares, passando por problemas com drogas, psicológicos e vão até pessoas que estão nessa condição de forma temporária por razões das mais diversas.

O Decreto Federal supramencionado, instituiu a Política Nacional para a População em Situação de Rua e é considerado o marco de proteção jurídica para esse público, por normatizar e nortear os princípios e diretrizes referentes a população de rua.

Na pesquisa promovida pelo Ministério de Desenvolvimento Social para determinar o perfil da população em situação de rua no Brasil, consta como fatores que levaram as pessoas a situação de rua: alcoolismo e/ou drogas (35,5%); desemprego (29,8%) e desavenças com pai/mã e/irmãos (29,1%). Normalmente esses motivos nã o sã o estanques, mas combinados entre si (BRASIL, 2008). O alcoolismo e o uso de drogas podem, por sua vez, ser causado por diversos fatores, como a baixa autoestima, o desejo de pertencimento a um grupo, o vazio existencial, o desejo de se alienar da realidade. E um dos principais motivos é a desavença com familiares. Amartya Sen lembrou que o forte relacionamento social é uma forma de estabelecimento de capacidades (1992, p. 117) e o seu rompimento, leva a condição de pobreza, e, em casos extremos, a situação de rua. 4

Os Centros de Referência Especializados para População de Rua – Centros POPs, são Unidades de atendimento temporário diurno, onde os usuários não contam com a possibilidade de se abrigarem a noite. Nestes Centros, as Pessoas aguardam por muito tempo para serem encaminhados a um dos 12 abrigos situados na cidade, estes abrigos vivem lotados e conseguir uma vaga é razão de muita espera. A Defensoria Pública do Estado – DPE vem judicializando as negativas tanto de acolhimento institucional, como de indeferimento do Auxílio Aluguel, porém estas demandas vêm sendo extintas sem resolução do mérito quando as Pessoas em Situação de Rua não conseguem comparecer à audiência de conciliação tamanha vulnerabilidade em que se encontram.

4 MIRANDA, Fabiana A. Revista Jurídica da Defensoria Pública de Bahia, 2015, Volume 2, p. 172

O Auxílio Moradia ou Auxílio Aluguel, está previsto na Lei Orgânica de Assistência Social – LOA, consiste num Benefício Temporário de Assistência Social, oferecido a Pessoa em Situação de Rua e a outras pessoas que se encontram em situações de caráter emergencial, mediante o comprometimento destes em apresentarem-se a um Centro de Referência e Atenção Social – CRAS regularmente com o comprovante de aluguel, para que possam continuar recebendo o benefício pelo prazo de um ano, prorrogável por igual período.

De acordo com o artigo 24 da Lei Orgânica de Assistência Social – LOA, os programas de assistência social compreendem ações integradas e complementares com objetivos, tempo e área de abrangência definidos para qualificar, incentivar e melhorar os benefícios e os serviços assistenciais. Apesar de ser um benefício que ampara minimamente a Pessoa que se encontra em Situação de Rua, este necessita de uma estrutura, coordenada por Políticas Públicas para que ganhe força no enfrentamento das demandas sociais desta População. Desta forma, o problema não está na ausência de norma, mas na ausência de Políticas Públicas voltas a aplicar e concretizar os direitos dessas pessoas que se encontram num estado de coisas inconstitucional.

 

7 MÍNIMO EXISTENCIAL VERSUS RESERVA DO POSSÍVEL

 

A Teoria da Reserva do Possível (princípio da reserva do possível) é uma construção jurídica Romano Germânica/Civil Law – sistema jurídico mais disseminado no mundo que se baseia no Direito Romano – sendo utilizada pelo Estado como excludente de responsabilidade diante das suas omissões prestacionais, buscando justificar a ausência de aplicação dos recursos para suprir determinadas demandas da população.

O Mínimo Existencial indica bens e utilidades básicas substanciais para que se possa viver uma vida com dignidade, sendo tão importante que está previsto no artigo 1 0 , inciso III, da Carta Magna. Não se confunde com o mínimo vital, mas diz respeito ao suficiente indispensável para que se tenha uma vida digna, numa condição que não confronte o princípio nuclear da Constituição que é o princípio da dignidade da pessoa humana, que abrange os direitos fundamentais e sociais. Caso contrário, bastaria estar vivo para que se presumisse efetivado tais direitos, portanto, a vida é quesito se ne qua non para que se possa alcançar a dignidade humana.

 

8 DIREITOS BÁSICOS CONSTITUCIONAIS

 

O artigo 5º da Constituição Federal de 1988, diz que todos somos iguais, sem distinção de qualquer natureza. Ocorre que as Pessoas em Situação de Rua estão sendo colocadas a margem desse conceito legal e ao contrário do que diz o artigo são tratadas com extrema desigualdade social, inclusive, não fazendo parte do censo populacional, como mostrado no início do artigo.

Essa População tem seus direitos fundamentais um a um violado, a começar pelo direito a vida que pressupõe condições que vão além do fato de existir, não
bastando, portanto, o primeiro respiro para adquirir tal direito. Este direito implica em ter condições para uma vida digna, ou seja, ter acesso aos direitos fundamentais e a garantia ao mínimo existencial. A População em Situação de Rua tem uma grave e clara violação desse direito, e basta uma breve caminhada pela Sete Portas, ou pelo Largo dos Mares, ou por outros bairros do Município de Salvador – Bahia para constatar essas injustiças.

A condição em que essas pessoas sobrevivem é isenta de qualquer tipo de perspectiva e de qualquer tipo de assistência que lhes permita viver em condições minimamente humanas. As Pessoas em Situação de Rua estão fora de qualquer contexto que ofereça a elas a oportunidade de sair da condição em que se encontram, são banidas de qualquer meio social digno, de oportunidade e de escolha, são invisíveis, como se não tivessem nascido, ainda que tenha dado o primeiro respiro.

Já o direito à liberdade, direito de primeira dimensão, requer um não fazer do Estado, isso não significa a omissão Estatal em seu papel prestacional. Aqui, para que haja efetivamente escolhas políticas, culturais, sociais, o Direito a Liberdade em si, há de se ter ao menos conhecimento daquilo que nos é possível, conhecimento do nosso potencial como pessoa. E isso também é cerceado na vida daqueles que estão em Situação de Rua, uma vez que na maioria das vezes essas pessoas são completamente inconscientes dos seus direitos e deveres, pois se assim não fossem não estariam nessa condição sub-humana. Aqui, esbarra-se com o conceito de pobreza latu senso, e sem que as Pessoas em Situação de Rua conheçam as suas capacidades, não podem fazer escolhas e empregar forças para que mude seu status quo.

Esse tema é muito profundo, mas em breve síntese, para que se possa abraçar uma ideia ou para que se rejeite uma outra, é necessário que se conheça sobre “assunto”, do contrário vive-se duplamente preso, preso na sua própria ignorância e nas mãos daqueles que estão munidos de má-fé.

O Brasil é um país subdesenvolvido e a população como um todo vive em completo desequilíbrio econômico e social. No que tange a População em Situação de Rua, destacando-a neste cenário, depara-se com um padrão de pobreza extrema, onde ainda existem pessoas alimentando-se de lixo nas ruas.

As violações aos direitos dessas pessoas são tão profundas e abrangentes que, por exemplo, ainda que “sejam disponibilizadas vagas nas escolas às Pessoas
em Situação de Rua”, ou seja acesso à educação, estas se tornam impraticáveis, uma vez que muitas destas pessoas, por não terem acesso a higiene pessoal e de seus pertences, a alimentação, a transporte, a moradia, sentem-se “desconfiguradas” nesse contexto social.

A População de Rua, neste mesmo panorama ficam impossibilitadas de acessar as oportunidades referentes a emprego, simplesmente porque se exigi atualmente no mercado de trabalho um padrão que não inclui essas pessoas. Ou seja, não há oportunidade, não há políticas públicas, não há um meio para que as Pessoas possam mudar o rumo das próprias vidas, porque simplesmente não há acesso e inclusão social.

No que tange ao direito a segurança, basta assistir um jornal ao meio dia para imaginar de longe o que é viver nas ruas. Os homens jovens e negros são as maiores vítimas deste massacre, uma vez que a violência tem aumentado de forma assustadora e estar vulnerável nas ruas os torna alvos fáceis das mais variadas formas de violências e injustiças. Existem jovens, inclusive, que acabam entrando na prática de atividades criminosas por motivos intrínsecos a sua condição de vulnerabilidade, e que muitas vezes desejam sair dessa sobrevida, mas a própria sociedade ou o Estado não permitem. Aqui são expostas a essa violência também as mulheres, os idosos e as crianças, e o público LGBT que sofrem descriminação em massa.

No que diz respeito ao direito a propriedade, vale uma leitura mais abrangente, sob a ótica do direito de ter direitos, é condição sine qua non para que qualquer pessoa possa ter acesso na prática ao que está estampado na Constituição Brasileira, e infelizmente a População de Rua definitivamente não tem esses direitos garantidos.

Nesse panorama dá para ter uma visão da violação massiva tratada neste artigo, que põe as Pessoas em Situação de Rua no contexto do Estado de Coisas Inconstitucional, uma vez que há uma falha estrutural em solucionar a questão e o problema tem se agravando ao longo do tempo sem qualquer perspectiva de ter fim.

9 INSTRUMENTOS DE APLICABILIDADE DO ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL

 

Na introdução da sua obra Estado de Coisas Inconstitucional no Brasil, o Autor Gianfranco Faggin Mastro Andréa, menciona a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão, não acreditando ser esta uma alternativa eficiente para a solução das omissões e/ ou deficiências estatais. Uma vez que a violação massiva e sistemática de direito constitucional não deriva de simples ausência de norma para concretização de políticas públicas.

O autor denomina essa ausência de prestação por parte do Estado de Omissões inconstitucionais “não normativas”, decorrente da falta de coordenação na atuação de diversos órgãos públicos, resultando numa considerável “falha estrutural”, que inviabiliza a concretização e a efetividade dos direitos fundamentaisconstitucionais. E que tratar-se de um bloqueio político e/ou institucional.

Esse tipo de falha estrutural que a Corte Colombiana denominou como sendo um Estado de Coisas Inconstitucional, da vazão ao tão polêmico Ativismo Judicial já tratado neste trabalho em outra oportunidade, pois o Poder Judiciário, quando acionado, toma medidas energéticas visando conter os abusos dos outros Poderes.

Faggin, portanto, destaca dois instrumentos processuais constitucionais para declaração do Estado de Coisas Inconstitucional, quais sejam, a arguição de descumprimento de preceito fundamental e o recurso extraordinário com repercussão geral, sendo o único órgão legitimado o Supremo Tribunal Federal, assim como é na Colômbia.

 

9.1 AÇÃO DE ARGUIÇÃO DE PRECEITO FUNDAMENTAL

 

A Ação de arguição de Preceito Fundamental – ADPF é uma ação que tem o objetivo de evitar ou reparar lesão a preceito fundamental causada pelo Poder Público. Esta ação está prevista no texto constitucional de 1988 no artigo 102 e na Lei n 9.882/1999 que dispõe sobre o processo e julgamento da arguição de descumprimento de preceito fundamental, nos termos do § 1 o do art. 102 da
Constituição Federa l.

Artigo 1º, caput da Lei n 9.882/1999, in verbis: “Art. 1° A arguição prevista no § 1o do art. 102 da Constituição Federal será proposta perante o Supremo Tribunal Federal, e terá por objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público. ”

A Ação de Arguição de Preceito Fundamental tem caráter preventivo e repressivo e atua sobre violações municipais, estaduais, federais e distritais, atingindo inclusive os atos anteriores a Constituição Federal de 1988, o que mostra uma maior abrangência deste instituto. Ele se diferencia das outras ações, pois abrange atos ou omissões não normativas do Poder Público.

O autor, Faggin em sua oba Estado de Coisas Inconstitucional no Brasil, revela que o Estado de Coisas Inconstitucional necessita de um instrumento para ser veiculado, e devido à grande abrangência da Ação de arguição de Preceito Fundamental, considera o melhor instrumento para efetivá-lo.

O rol de legitimados para propor Ação de arguição de Preceito Fundamental está elencado no artigo 103, I a IX, da Constituição Federal de 1988, e artigo 2° da Lei 9.868/1999, e são os mesmos que podem propor a Ação Direta de Inconstitucionalidade. Desta forma, a declaração do Estado de Coisas Inconstitucional das Pessoas em Situação de Rua fica condicionada a arguição autônoma da Ação de arguição de Preceito Fundamental perante o Supremo Tribunal Federal, por se tratar de uma ação típica de controle concentrado abstrato, com o objetivo de proteger os preceitos fundamentais de alguma forma lesados por atos do Poder Público. Ou de arguição incidental da Ação de arguição de Preceito Fundamental que chega ao Supremo Tribunal Federal através de controvérsia constitucional relevante sobre lei ou ato normativo, surgido dentro de um processo subjetivo de maneira incidental.

 

9.2 RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM REPERCUSSÃO GERAL

 

Há ainda a possibilidade de declaração do Estado de Coisas Inconstitucional através de Recurso Extraordinário – RE por meio de uma repercussão geral, que é um requisito de admissibilidade da Ação perante o Supremo Tribunal Federal, devendo, portanto, ultrapassar os interesses subjetivos da causa.

A repercussão geral é requisito autônomo de admissibilidade de recurso extraordinário no âmbito do controle difuso. Faggin, faz esse apontamento em sua obra e explica que tal requisito tem o caráter de conferir racionalidade decisória ao sistema, proporcionar a duração razoável dos processos e, reduzir o número de recursos ordinários dirigidos ao Supremo Tribunal Federal.

O autor diz que:

[…] a declaração do ECI via repercussão geral em recurso extraordinário é perfeitamente compatível com a sistemática processual brasileira, aproximando-se muito da figura da acción de tutela colombiana, uma vez que a partir de um caso paradigmático, que ostenta multiplicidade de casos idênticos, apresenta-se possível enfrentar uma situação de inconstitucionalidade por falhas estruturais pautadas por bloqueios políticos e institucionais. Ao lado da ADPF, o recurso extraordinário com repercussão geral apresenta todos os elementos imprescindíveis para a declaração do ECI:
a) capacidade de se estabelecer um leading case, como termômetro da violação de determinados direitos fundamentais, em função do grande número de ações em andamento sobre a mesma questão;
b) possibilidade da decisão produzir efeitos com relação a todos os processos em andamento e que ainda estejam para ser ajuizados;
c) proteção de direitos de grupos minoritários;
d) espaço para aplicação da técnica de julgamento do ECI para conferir ao STF o papel de “coordenador institucional” na superação institucional na superação do estado de inconstitucionalidade, por meio de monitoramento supervisório com decisões flexíveis, retirando órgão e poderes públicos da inércia. 5

Dessa maneira, tratando-se das Ações propostas pela Defensoria Pública no Município de Salvador – Bahia, seria necessário cumprir o requisito de admissibilidade, qual seja, repercussão geral, para que a matéria tivesse a chance de ser analisada pelo Supremo Tribunal Federal, porém, como dito anteriormente, os processos vêm sendo extintos em resolução do mérito por conta das ausências das Pessoas em Situação de Rua nas audiências de conciliação, tamanha sua vulnerabilidade. Tornando, portanto, dificilmente aplicável o Recurso Extraordinário como instrumento para declaração do instituto do Estado de Coisas Inconstitucional dessa População.

 

10 O ENFRENTAMENTO DO ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL DAS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA

 

O autor Giafranco Faggin Mastro Andréa destaca que “a declaração do ECI pressupõe a existência de um litígio estrutural, ou seja por se tratar de questão extremamente complexa a ser resolvida e que envolve a atuação de diversos órgãos públicos e poderes de maneira coordenada, atrelando a situação de bloqueios institucionais e políticos, quer por falta de diálogo entre órgãos/poderes, quer por baixa capacidade institucional para a superação do problema, há a necessidade de remédios também estruturais , com a interferência do juiz ou Corte Constitucional nas escolhas orçamentárias e nos ciclos de formulação, avaliação de políticas públicas, valendo-se de ordens que redimensionam esses ciclos e permitam melhor coordenação estrutural”.

5 ANDRÉA, Giafranco F. M. 2018, Estado de Coisas Inconstitucional no Brasil, 2018, p. 158-159

O autor fala ainda da excepcionalidade da aplicação da medida, limitando-se aos casos em que há graves violações de direitos fundamentais de grupos vulneráveis, pelo distanciamento entre o que diz o texto constitucional e a realidade em que esse grupo vive. De maneira que a atuação judicial se dê de maneira equivalente ao tamanho da violação, em maior ou menor grau, dependendo do
tamanho desta.

Esse ativismo judicial não é ilimitado, diz o autor, e refere-se apenas a situações de alocação orçamentária, ficando a implementação de políticas públicas a cargo dos órgãos competentes para tanto. Cabendo ao juiz acompanhar, através de audiências públicas e monitoramento contínuo com participação de setores da sociedade civil e a prestação de contas. Neste sentido o autor afirma:

Após a declaração do ECI por meio de decisão judicial a Corte Constitucional determina a apresentação de plano de políticas públicas para o enfrentamento do problema pelos órgãos ou poderes competentes, oportunidade em que se inicia a fase de monitoramento judicial, por meio de realização de realização de audiência pública e ordens flexíveis, pautado por um protagonismo judicial dialógico para que se alcance em conjunto e democraticamente uma efetiva superação do “estado de coisas inconstitucional. 6

Desta forma, não há que se falar em desrespeito a separação dos poderes, mas tão somente do Check and balance system (sistema de freio e contrapeso), onde um Poder está habilitado a intervir nos abusos do outro poder. E o que seria essa Situação de Coisas Inconstitucional das Pessoas em Situação de Rua, senão um abuso, do poder Executivo Municipal de Salvador -Bahia?

6 ANDRÉA, Giafranco F. M. 2018, Estado de Coisas Inconstitucional no Brasil, p. 1820

11 CONCLUSÃO

Ao considerarmos o exposto, temos que as Pessoas em Situação de Rua no Município de Salvador – Bahia vivem em uma continua, plural e estrutural violação de direitos fundamentais. Essa População vem sofrendo com a inércia das autoridades públicas responsáveis por implementarem Políticas Públicas adequadas e eficazes. Contraposto a isto as Ações anunciadas pelo Poder Executivo do município são paliativas e revelam o despreparo e a indiferença frente ao problema que só cresce e se agrava.

Como dito ao longo do trabalho, não se trata de omissão legislativa, pois existe norma que garante os direitos dessa População, o que ocorre é que não há efetivação desses direitos. Para que estas normas surtam efeitos é necessário que o Poder Executivo faça a sua parte, qual seja, a criação de Políticas Públicas que entreguem essas garantias constitucionais a população.

Sem embargos, a realidade das Pessoas em Situação de Rua no Município de Salvador – Bahia, se encaixa ipsis litteris no conceito de Estado de Coisas Inconstitucional, e isso fica ainda mais claro com a construção de mais uma Unidade do Centro Especializado para Pessoas em Situação de Rua – Centro Pop, pois como dito esses centros sozinhos e com a estrutura que possuem não resolvem o problema. É preciso pensar em mecanismos que se complementem e que observem os perfis de pessoas nessas condições, que possuem demandas diferentes e específicas.

Para tanto, vale ressaltar que ao Poder Público do Município de Salvador diuturnamente não convém sustentar o princípio da reserva do possível frente a aplicabilidade dos direitos fundamentais, pois temos presenciado o empenho da atual gestão, por exemplo, em aplicar veementemente os recursos públicos existentes para arrumar a cidade, as orlas, praças, entre outros. Preterindo, portanto, a condição das Pessoas em Situação de Rua ao embelezamento da capital baiana.

Atestando, por fim, que se faz necessária a aplicação do instituto de Estado de Coisas Inconstitucional, através de instrumentos como a Arguição de preceito fundamental para que o Poder Judiciário na figura do Supremo Tribunal Federal adote o sistema de freios e contrapesos – Checks and Balances – e determine que as medidas de emergência cabíveis sejam adotadas, realocando os recursos públicos e indicando prazo razoável para que o Poder Executivo de Salvador – Bahia estude de fato o problema e adote ações Públicas específicas que atenda as diversas demandas dessa População e as liberte desse Estado de Inconstitucionalidade em que vivem.

 

REFERÊNCIAS

ANDRÉA, Giafranco F. M. Estado de Coisas Inconstitucional no Brasil, Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2018.
BRASIL. Governo Federal. Institui a Política Nacional para a População em Situação de Rua e seu Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento, e dá outras providências. DECRETO Nº 7.053 DE 23 DE DEZEMBRO DE 2009. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007- 2010/2009/decreto/d7053.htm/>. Acesso em 10 Jul. 2019.
CARDOZO, Cláudia. Defensora denuncia situação de moradores de rua em SSA: ‘não temos mais abrigo nenhum’. Bahia Notícias. Disponível em: <https://www.bahianoticias. com.br/justica/noticia/51509-defensora-denuncia- situacao-de-moradores-de-rua-em-ssa-039n ao-temos-mais-abrigo- nenhum039.html/>. Acesso em 10 Jul. 2019.
GTM/MFB, Assessoria de Comunicação Social, Defensoria Pública da União, DPU consegue incluir pessoas em situação de rua no Censo do IBGE. Jusbrasil. Disponível em: <https://dpu.jusbrasil.com.br/noticias/664982806/dpu-consegue- incluir-pessoas-em-situacao-de-rua-no-censo-do-ibge>. Acesso em 10 Jul. 2019.
MIRANDA, Fabiana A. Revista Jurídica da Defensoria Pública de Bahia, 2015, Volume 2. MUNIZ, Tailane. Salvador terá seis unidades de acolhimento para pessoas em situações de rua. Correio da Bahia. Disponível em: <https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/ salvador-tera-seis-unidades-de- acolhimento-para-pessoas-em-situacoes-de-rua/>. Acesso em 10 Jul. 2019.

 

 

 

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